Estranhas formas de vidas

Ontem foi um daqueles dias, cheios, de nada. Um dia assim-assim. Detesto dias assim-assim. Prefiro os dias bons, ou até mesmo os dias maus. E nem sou muito exigente. Para mim, um dia bom, é um dia que eu consigo escapar sem ouvir a estória da Brandi Carlile, pela inésima vez.

Dias assim-assim, tal como pessoas assim-assim, fazem sentir-me assim-assim. Detesto! Sentir-me assim-assim não é sentir.

Era urgente que eu começasse a sentir qualquer coisinha.

Durante o dia tive dois convites para programas diferentes, para essa noite. Aceitei o primeiro que me fizeram mas confesso que nenhum me agradava particularmente. Muitas vezes esqueço-me que posso recusar convites...
Curiosamente, nenhum se concretizou. Assim, após o jantar, dei por mim sozinha e sem ter o que fazer. O que, num dia normal, para mim, é óptimo. Mas, em dias assim-assim, não é.
Antes do dia terminar, tinha de sentir qualquer coisinha para ter a certeza que estava viva e que tenho sangue, quente, a correr nas veias.

Resolvi sair de casa. Saí sem rumo, como tantas vezes faço. Decidiria durante o caminho. E assim foi.
Optei por um dos meus programas a solo preferidos: livraria Leitura e sessão de cinema.

Quando me dirigi à bilheteira reparei que as estreias da semana não me motivavam muito. Ainda assim, a jeito de recordação de uma época da minha conturbada adolescência, em que só ouvia Amália, optei por este filme.
Segui para a livraria.

Precisava de comprar um livro. Já estou quase a acabar o Pedro Paixão. Felizmente! Já não posso com tanta paixão arrebatadora. Cansa! E não me apetece ler nenhum dos livros que tenho por ler lá em casa.
Tinha de ir à caça ao livro.
Apetecia-me algo que me fizesse sentir mas que não fosse arrebatador. Algo ligeiro. Não me apeteciam romances, ou clássicos, nem livros técnicos. Apetecia-me algo... simples... simplesmente humano.

Como "quem procura, encontra", no meio de tantos livros bati os meu lindos olhos no outro amor de Carlos Pac Nobre. Quem me conhece, sabe que eu gosto das coisas que este tipo escreve. Alguém que gosto de ir acompanhando. A ele e ao Manuel Cruz.

Usei a minha táctica infalível do costume: abri o livro aleatoriamente e li uma passagem. Gostei. Fechei o livro. Voltei a abrir o livro numa página à sorte. Li uma passagem e voltei a gostar. Tratava-se de uma compilação de crónicas, publicadas num jornal da praça. Comprei o livro!

Mal apanhei o livro nas mãos, comecei a lê-lo compulsivamente. Finalmente, começava a sentir qualquer coisinha.

Entretanto, começa o filme.
Não me recordo da última vez que chorei assim tanto a ver um filme. De repente, lembrei porque gostava tanto de ouvir Amália: aquela voz, o sentimento com que canta, são inconfundíveis. Lembrei que gosto de fado. Do fado da Amália e de fado vadio. O fado que canta a dor e a saudade de um povo. Povo esse que hoje já não reconheço. Um povo que deixou de sentir, que deixou de cantar, que deixou de viver. Rendido à música ligeira, na forma e de conteúdo. Toda igual, cantada de forma igual. Tal como as pessoas. São todas iguais. Já não se deixam apaixonar, não amam, nem odeiam!, não sentem, não vivem. Parecem pequenos humanos robotizados, provavelmente de origem nipónica, dada a sua eficácia e eficiência no cumprimento da sua árdua tarefa: não ser, não sentir, não viver.
Gosto de pessoas que sentem: que amam, que se apaixonam, que cometem erros e caem, e voltam a levantar-se, que riem e choram e assumem que o fazem, pessoas com nervos, ou até mesmo pessoas que odeiam tudo e todos. Estes últimos cada vez em maior número. Parece que virou modinha.
Gosto de pessoas que vivem e que assumem o que sentem. Gosto de pessoas, ponto!

Amália era uma pessoa destas, das que sentia.
Não conhecia a vida da Amália mas já sabia que era uma grande mulher. Identifiquei-me em muitas das suas palavras e acções, na sua estranha forma de vida.
O filme, como filme, não vale nada. Mas, para mim, ontem, valeu muito.

E aqui vos deixo um poema da própria Amália. E um dos meus fados preferidos, a par do Nem às paredes confesso.

Estranha forma de vida

Foi por vontade de Deus
que eu vivo nesta ansiedade.
Que todos os ais são meus,
Que é toda a minha saudade.
Foi por vontade de Deus.

Que estranha forma de vida
tem este meu coração:
vive de forma perdida;
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.

Coração independente,
coração que não comando:
vive perdido entre a gente,
teimosamente sangrando,
coração independente.

Eu não te acompanho mais:
para, deixa de bater.
Se não sabes onde vais,
porque teimas em correr,
eu não te acompanho mais.

Amália Rodrigues

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