Atonalidade

Enquanto ando às voltas com balancetes, débitos e créditos, demonstrações financeiras, num sábado à tarde, na companhia de Brahms e do seu magnífico Requiem, não consigo deixar de pensar e se eu tivesse enveredado por uma carreira na música, conforme ponderei há muitos anos atrás?... E porque não o fiz?

Sem dúvida que a música é das coisas mais importantes na minha vida. Não funciono sem ela, mas fazer dela uma profissão? Profissional de música. Sempre me pareceu coisa de vendido...
Quando comecei com as aulas de piano, deixei bem claro que só queria aprender, nunca fazer carreira.
Gostava daquela sensação de receber uma partitura nova e descobri-la. Tentar entender que o compositor sentia na altura em que a escreveu e interpretá-la à minha maneira. Deixar-me levar por cada nota, por cada pausa, por cada mudança de tom, por cada harmonia. Por vezes era tão difícil conseguir a expressão certa e transmiti-la pelas teclas inanimadas do piano. Zangava-me com ele! As dificuldades...
O meu professor, sabiamente, dizia que era uma luta entre mim e o piano. E que eu não o poderia deixar vencer. Obstinada como sou, passava horas à volta com uma passagem de meia dúzia de compassos. Por fim, lá conseguia.
A primeira vez que tocava uma peça de início ao fim de cor, era mágica! E valia cada segundo de trabalho.
Tocar piano era das poucas coisas que me relaxava completamente. Quando me sentava ao piano, o mundo deixava de existir. A casa podia arder que eu não repararia. No entanto, era um acto solitário, muito pessoal. Não conseguia tocar bem se sentisse que alguém me estava a escutar. Era um acto de amor, a dois: eu e o piano.
Como todas as relações assim apaixonadas, a dada altura tivemos uma briga feia. E eu cortei relações com ele. Queriam que eu fizesse daquilo profissão. Encará-lo como uma obrigação. Não fui capaz e desisti dele.
Às vezes ainda me questiono se não deveria ter cedido. Segui o meu instinto, aquilo que acreditava e agora apercebo-me onde isso me trouxe. Terá valido a pena?
Acabei numa profissão que nada tem a ver com música ou arte. Uma profissão objectiva, nada criativa, chata, cinzenta, com prazos a cumprir e muita burocracia à mistura. Talvez seja esta profissão que me mantém sã. Não sei mas gosto de acreditar que sim.

E este Requiem de Brahms!... Lindo! Sofrido, doloroso, intenso mas sempre num tom de esperança. A última de todas. A esperança de que, no fim, tudo se resolve.
Será mesmo o fim de tudo ou o só um novo princípio, libertador?...

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