L'Ângela

Conheci a L'Ângela, devia ela ter uns cinco anos. Entrou pela porta dentro, pela mão da vizinha. Quando me inclinei para a saudar, aquela criança de olhos vivos saltou ao meu pescoço, num abraço apertado, demorado, sentido. Um abraço que me fez subir as lágrimas aos olhos. "Ela é assim", foi a resposta dada pela vizinha, quando a olhei inquisidora, ainda perturbada pelo impulso daquela misteriosa criança.
A bem da verdade, não sei quem precisava mais daquele abraço: se L'Ângela, se eu.

A partir desse dia, L'Ângela pisgava-me lá para casa sempre que podia, para o pé de mim.

Soube que era uma criança que vivia com muitas dificuldades financeiras e num péssimo ambiente familiar. Teria sido abandonada pela mãe, ainda em bebé, tendo ficado a viver com a avó, uma vez que o pai andava sempre envolvido em conflitos, mais ou menos graves.
Ninguém dava atenção a L'Ângela. Ela estava a ser criada entre gritos e porrada.
Podia ter-se tornado uma criança fechada e revoltada, mas não.
L'Ângela não era doce e terna, à primeira vista. Pelo contrário, era arisca, com a resposta pronta na ponta da língua, impedindo que se aproximassem demasiado dela.

Dava com ela a observar-me à distância, como a fazer-se convidada para entrar. Eu puxava por ela. Gostava de conversar com ela, ver até onde ela ia. Desconfiada, muitas vezes olhava-me de soslaio a tentar perceber onde queria chegar. Não era propriamente inteligente, mas era perspicaz, intuitiva, com o sexto sentido apurado.
Sentia-a, na maior parte das vezes, inquieta, nervosa. Um nervoso miudinho. Inconformada.
No entanto, ao pé de mim, parecia-me sempre mais calma, a sossegar. Deitava-se ao pé de mim, meio a medo, e ficava ali, sem me incomodar, fazendo-me companhia enquanto eu lia.

Uma vez, decidimos colorir. Gosto de explorar a imaginação das crianças, principalmente através do desenho.
L'Ângela disse-me que ia fazer um desenho para mim. Qual o meu espanto, quando ela me entrega o desenho: eu e ela, e em letras garrafais, um gosto muito de ti.
Já mal me segurava mas ainda lhe consegui dizer que também gostava muito dela. Ela abraça-se a mim e pergunta-me se eu não queria ser mãe dela. Só senti um aperto enorme no peito e um nó na garganta. Como é que explicava àquela criança que o que ela me pedia não era possível?...
Seguiu-se uma das conversas mais dificeis que já tive. Ela sentada no meu colo, aqueles olhos a fitarem-me, pedindo-me para que os fizessem compreender porque tinha de ser assim, e eu sem saber dar-lhes uma explicação minimamente convincente. Ainda hoje não sei como me consegui segurar sem desabar num pranto. Eu só conseguia pensar no que aquela criança sofria, na falta de atenção que tinha. Na forma como ela se apegou a mim, só porque lhe dava alguma atenção.
Aquela criança tinha um superávit de amor para dar e, ao mesmo tempo, sofria de um deficit enorme de afecto. E como eu a compreendia.

Por imposições da vida, não vejo L'Ângela há anos. Da última vez que tive notícias dela, soube que tinha ido viver com uma tia. Espero que a tia lhe proporcione e vida que aquela menina merece, que saiba chegar até ela, que a compreenda e lhe dê o que ela precisa. Ela precisa de tão pouco. Não é justo que nem isso receba.

Não há um dia que passe sem que eu lembre L'Ângela.
Aquele abraço que me deu da primeira vez que nos vimos, marcou-me para sempre. Recordo-o muitas vezes e no bem que me fez.

2 comentários:

Carpe Diem disse...

A doçura de um abraço não se esquece, adorei o texto e tb eu, apesar de n a conhecer, espero que L´Ângela esteja feliz ou tenha razões para sorrir.

É tão facil fazer feliz alguém, por vezes basta estender a mão, noutras um abraço e ainda talvez um simples "estou do teu lado" serve... mas, hj em dia, cada vez menos se consegue encontrar quem esteja "disponível" a isso.

Beijos
Nuno.

Brunhild disse...

:)

bjk