Ensaio sobre a visão *

A minha memória sempre foi um mistério para mim. Se, por um lado, haviam episódios que ficavam gravados a ferro e fogo, outros haviam que eram como se nunca tivessem existido, apagados completamente, sem passar pela reciclagem.

Até que um dia li um artigo sobre uma tal “memória selectiva”. O artigo não me convenceu mas continuo a dar-lhe o benefício da dúvida.

Basicamente, o tal artigo, defendia que a há pessoas que só retêm o que lhes interessa, o que lhes convém. Tudo o resto é eliminado, não existe.

A meu ver, toda a memória é, por defeito, selectiva. E tem uma ligação directa com a atenção que dispensamos no momento em que o facto se dá, ou seja, está relacionada com o nosso interesse naquela situação em concreto. Quem diz situação, diz pessoa.
Assim, a memória selectiva não seria a excepção mas sim a regra.

Obviamente que uma memória deste tipo pode levar a situações de memórias recalcadas, situações mal resolvidas que ficam para sempre presas no inconsciente. E que, apesar de não nos apercebermos, acabam sempre por nos condicionar de alguma forma. Se calhar até nos condicionam mais que outras memórias mais conscientes.
Mas não é por aí que pretendo ir. Não desta vez.

Assumindo que existe a tal “memória selectiva”, será que podemos extrapolar essa teoria para a visão? Isto é, uma “visão selectiva”?



“Pior cego é aquele que não quer ver.”

Primeiramente, quero explicar que, quando me refiro a uma “visão selectiva”, refiro-me à visão subjectiva e não à visão objectiva.
Exemplificando, duas pessoas observam um quadro de Claude Monet. Ambas vêem objectivamente o mesmo quadro. No entanto, a sua visão subjectiva será diferente. O quadro que vão guardar na memória, que irão recordar, será diferente.
Uma coisa é certa: ambas vão adorar o quadro.

Visão subjectiva:

  1. Quantitativa: os ceguitos - Míopes e Hipermétropes
  2. Qualitativa: "visão selectiva" - "visão inteligente", visionários e filtros

Comecemos pela visão subjectiva quantitativa: os ceguitos, aqueles que precisam de óculos mentais. (Ou não.)

Haverá os que vêem mal ao longe, hipermétropes; Os que vêem mal ao perto, míopes; Os que vêem mal ao longe e ao perto, míopes hipermétropes; E aqueles casos raros que não são uma coisa nem outra.

Os hipermétropes serão aqueles que não vêem dois passos à frente. Só vêem o que está mesmo à sua frente. Tudo o resto é desconhecido. Só mesmo quando esbarram nas coisas é que as vêem.
Porquê? Por preguiça mental, acredito. Porque dá muito trabalho pensar. Ou porque gostam de viver um passo de cada vez. São os realistas.
Os míopes serão aqueles que, até vêem bem ao longe, mas quando as coisas estão à sua frente, ficam desfocadas, não são claras. Nem esbarrando nas coisas as vêem.
Porquê? Por preguiça anímica, talvez. Porque o copo está sempre meio vazio ou meio cheio. Nunca está na medida certa. São os sonhadores.
Por último, os míopes hipermétropes, são um misto das duas coisas. Vivem num limbo, entre a realidade e o sonho: pés assentes na terra mas cabeça lá em cima na lua.
Aqueles que não são uma coisa nem outra, vêem bem ao longe e ao perto, são uns privilegiados e vamos ignorá-los. São muito chatos. Têm sempre razão e acabam sempre com: “Eu não te disse?”.

Por outro lado, temos a visão subjectiva qualitativa: a “visão selectiva”.
Dentro deste grupo, proponho a seguinte classificação: a visão inteligente, os visionários e os filtros.

A visão inteligente será aquela que está mais próxima da visão objectiva. Este tipo de visão dispensa a atenção estritamente necessária para lidar com aquela situação específica. Aparta o trigo do joio com perícia. Só vê o que de facto interessa, não se perdendo com grandes pormenores. É uma característica das pessoas racionais. Será a visão que todos deveríamos procurar ter.
Os visionários são aqueles que vêem demais, acreditam demais. Deturpam a realidade por excesso. Talvez por excesso de confiança. Normalmente é uma característica de pessoas presunçosas.
Por último, temos aqueles que usam filtros e deturpam a realidade por defeito. Podem ser filtros optimistas ou pessimistas, mediante a índole de cada um. E será uma característica de pessoas inseguras.

Exemplificando, voltando ao quadro de Monet.
Vamos todos observar o clássico Nenúfares.
(Nota: o quadro de Monet perde muito detalhe visto desta forma, obviamente.)




Uma pessoa míope, precisará de se afastar do quadro para o conseguir apreciar condignamente. Caso contrário, muito perto, vai perder-se no detalhe da pintura de Monet e não compreenderá o quadro como um todo.
Uma pessoa hipermétrope terá de chegar muito perto do quadro para reparar no detalhe. De outra forma, só verá os grandes traços. As tonalidades subtis e as pinceladas mais pequenas passam-lhe despercebidas.
Um míope hipermétrope terá de andar passo à frente, passo atrás. Ou deixar de ir a museus.

Uma pessoa com visão inteligente, irá dar somente a importância estritamente necessária aos pormenores de forma a poder compreender o quadro como um todo. Provavelmente, terá Monet como um dos seus pintores preferidos.
Uma pessoa visionária, irá achar genial a pintura de Monet, cheia de detalhe, de nuances. Provavelmente considera Monet o melhor pintor de todos os tempos e será sem dúvida o seu único pintor de eleição.
Uma pessoa que use filtros, provavelmente não terá grande opinião acerca do quadro nem acerca de Monet. Poderá gostar ou não gostar, mas receia que a sua visão não corresponda à realidade e, como tal, não emitirá opinião, não avançará.


Concluindo: perante a mesma situação, as pessoas têm visões diferentes dos factos. E isso poderá ser revelador do seu carácter. Ou não.


* Eu tenho que ocupar a mente com alguma coisa durante os intervalos dos ensaios!

3 comentários:

Jorge disse...

Eu já tinha chegado à tua conclusão sem escrever um ensaio... :D

Brunhild disse...

Haja alguem que me compreenda!
Devias partilhar a tua sabedoria com o ppl.

Jorge disse...

Se eu fizesse isso, provavalmente ía preso !!

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Partilha é o teu número de telemóvel comigo porque não tenho o teu número no novo e tinha ficado de te ligar hoje :|
Envia SMS para o meu novo número ou envia email... senão só quando chegar a lx.
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