Sabe tão bem...

retirado do JN de 14/02/2008

"Prenda natalícia por Hélder Pacheco, Professor e escritor

Escrevo esta crónica para me compensar da sensação incómoda de assistir ao desmantelamento paulatino de um país que, ao longo do tempo, concedeu, pelo menos, o atributo da confiança e da estabilidade às pessoas que, de repente, se vêem confundidas num turbilhão de mudanças que não entendem (bem as ouço comentar no meu autocarro 207). E, se não entendem as imposições e sacrifícios chamam-se insensibilidade social e arrogância política. Para me compensar, pois, de tudo isto e muito mais para que começo a não ter estômago, falarei do outro país. Do meu país bonito, de gente fantástica, que faz coisas admiráveis e não tem tempo de antena nas televisões mais atentas ao lixo e ao sangue do que à dignidade da nossa gente.
Neste Natal, D. Lourdes, minha dedicada quase secretária há 30 anos, ofereceu-me um CD editado por esse magnífico exemplo de qualidade chamado Numérica, produtora - imaginem! (sediada não na capital) daí, talvez, o seu trabalho de divulgação das culturas e tradições musicais portuguesas - mas em Paços de Brandão. O CD intitula-se "Um Natal português" e contém 13 composições de Carlos Azevedo, Fernando C. Lapa, Fernando Valente e Eugénio Amorim. No cuidado livrete que o acompanha, os compositores assinam a explicação da obra como sendo "o resultado de uma ideia feliz celebrar o Natal a partir de canções da nossa tradição popular. Tal foi o desafio lançado pelo Coro da Sé Catedral, a um quarteto de compositores portuenses, desde há anos empenhados na vida musical da cidade". E adiantam: "Esta peça assume-se como um alargado fresco onde se afirma a pluralidade de gestos e olhares com que o nosso povo se debruça sobre o presépio. São melodias que muitos reconhecem (…). Na sua linguagem ora crua ora subtil, mas sempre festiva e maravilhada, encontramos algumas das mais saborosas expressões da nossa rica tradição popular (…) num território comum onde se cruzam o popular e o erudito."O resultado é, quanto a mim, admirável. Para delícia dos nossos ouvidos cansados da fancaria de feição internacionalista com que somos quotidianamente supliciados, a gravação permite-nos o regresso à terra dos encantamentos e magias. A terra da pureza infinda, retrato transparente de um povo que cantava "Foi na noite de Natal / Noite de tanta alegria…". Ou: "Ó da casa, nobre gente / Escutareis e ouvireis…". E: "Pastores que andais na serra / Não corteis o rosmaninho…". Ou a admirável: "Alegrem-se os céus e a terra / Cantemos com alegria...". E a belíssima: "O Menino está deitado, / Em palhinhas de erva em flor…", etc., etc.. Sob a direcção do maestro Osvaldo Ferreira, a soprano Sílvia Correia Mateus, o Coro da Sé Catedral do Porto, o Octeto de Flautas de Bisel e a Orquestra Sinfónica da Póvoa de Varzim brindam-nos com interpretações límpidas, envolventes, cuja simplicidade nos transmite a sentida experiência de uma tranquila alegria. Inesquecível.
E, senhores do cosmopolitismo apregoando inovação a rodos, senhores dos discursos besuntados de provincianismo a armar ao vanguardista, as sonoridades destas músicas cheiram subtilmente a rosmaninho e à nossa urze, e sabem deliciosamente a papos de anjo e a toucinho do céu. Não obstante, demonstram aquilo que os iconoclastas de pacotilha jamais entenderão a modernidade e inovação, além de não serem incompatíveis com grandes linhas de força de uma tradição identitária, fazendo a ponte entre o passado, o presente e o futuro, são claramente confirmadas nesta obra como desafio estimulante a um país como o nosso.
Como não é oriundo do Terreiro do Paço cultural, nem jet-set centralista, corrupção, golpe, assassínio, desfalque, pedofilia e outro rebotalho, ninguém fala do trabalho desta gente devotada e dedicada à afirmação das nossas raízes. Esta gente que, ao invés de o desmantelar, contribui para a construção de um país nobre, amável, consistente, sem esperar prebendas do Sistema, merece a nossa simpatia. Aqui a enalteço, expressando-lhe a minha admiração e gratidão pelos momentos que me fez viver.
Informo também, parafraseando Júlio Dinis, "Vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu a abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais ainda o Natal de Cristo…", que o disco se encontra à venda na igreja da Lapa e na Casa Diocesana de Vilar. Que eu saiba, o projecto não vive de subsídios e deve, por isso, ao menos ser apoiado por quantos ainda se prezam de falar Português."

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